16 de setembro de 2012

Impressão das Chagas de São Francisco - Do Monte Alverne à irmã morte corporal


Na Toscana, existe um monte rochoso e coberto de bosques, inacessível e sublime, com fendas horríveis cobertas de musgo e de frescor. Há muitos anos, o conde Orlando de Chiusi lho doara, em sinal de devoção, para que se servisse dele nos seus encontros com Deus.

Em agosto de 1224 subiu Francisco com alguns irmãos os mil e trezentos metros do Monte Alverne. É difícil ao turista que sobe hoje de automóvel esse monte, imaginar o que significava para Francisco, já esgotado, viajar a lombo de burro pelos caminhos sinuosos até chegar ao cimo da montanha, onde ela parece abrir-se subitamente, oferecendo, do alto duma rocha íngreme, vista para os vales lá embaixo. Cuidados, privações e enfermidades tinham enfraquecido o corpo desse homem de quarenta e dois anos. Francisco sempre se sentiu à vontade nos cumes das montanhas. Desejava afastar-se das últimas preocupações a respeito de sua Ordem, das decepções e da falta de compreensão. Pediu que o levassem a uma abertura na rocha, onde ainda se vê uma grade no lugar em que ele dormia; pode-se supor que não foi mudada muita coisa naqueles blocos de pedra úmidos e mofados.

Ano após ano, penetrava cada vez mais na essência de Deus até chegar à mais elevada forma que se possa imaginar na terra: à contemplação mística de Deus. É esta contemplação mística que ele experimentará de uma forma única na solidão do Alverne, pelo espaço de quarenta dias (de 15 de agosto até 29 de setembro, festa de São Miguel). Ele se retira do convívio de seus irmãos e só o irmão Leão pode lhe levar diariamente um pouco de pão e água durante a sua viagem mística ao invisível.

(Do livro Francisco de Assis, Profeta de Nosso Tempo, de N. G. Van Doornik)


Do Monte Alverne à irmã morte corporal


Os dois últimos anos da vida de Francisco foram um Calvário! Os problemas na Ordem continuam. Sobretudo, com divisões internas. Vimos há pouco como ele passou a comungar mais profundamente com o mistério de Deus pela prática da misericórdia e da paciência com os pecados dos frades. Francisco se retira no Monte Alverne. Lá, conversa com Deus, lembra-se do Crucificado e, assim, mergulha mais profundamente em seu mistério. Isto é, decide continuar amando seus irmãos, mesmo assim. E o que acontece? Vemo-lo totalmente identificado com Aquele que, na cruz, entregou a própria vida pelos amigos. Vemo-lo de tal maneira em comunhão com o mistério deste amor solidário e misericordioso de Deus que, de repente, as próprias chagas do seu Senhor lhe aparecem no corpo. Hoje se diria: A paixão de Cristo se somatiza na paixão de Francisco. Em outras palavras, escreve Alexander Gerken:

“O que mais crucificou Francisco durante os dois anos anteriores à sua morte foi a divisão da Ordem, que tinha crescido demais até para ele. Sofria vendo a desunião existente nela e como muitos de seus irmãos não podiam ou até não queriam seguir o ideal primitivo. O fato de não abandoná-los, de amá-los, e amá-los em sua fragilidade, ‘até a cruz’,constitui o conteúdo e a causa de sua experiência da cruz no Monte Alverne. O sofrimento pela Ordem lhe gravou as chagas e, a partir de seu amor crente, soube que eram as chagas do Crucificado, que não reteve para si sua própria vida, mas a entregou por todos nós”.

Francisco se sente realmente mergulhado no “segredo” de Deus, seu altíssimo Senhor e Rei, único Bem, referencial único para a construção de uma autêntica fraternidade humana. E, nesta experiência de comunhão total com o modo-de-ser do seu Senhor, consola seu inseparável companheiro Frei Leão, compondo este maravilhoso Hino de Louvor a Deus:

“Vós sois o santo Senhor Deus único, que operais maravilhas! Vós sois o Forte. Vós sois o Grande. Vós sois o Altíssimo. Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do céu e da terra. Vós sois o Trino e Uno, Senhor e Deus, Bem universal. Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus vivo e verdadeiro. Vós sois a delícia do amor. Vós sois a Sabedoria. Vós sois a Humildade. Vós sois a Paciência. Vós sois a Segurança. Vós sois o Descanso. Vós sois a Alegria e Júbilo. Vós sois a Justiça e a Temperança. Vós sois a plenitude da Riqueza…”

Daí em diante, a vida de Francisco foi de atrozes sofrimentos, também corporais. Vivia esmagado por toda sorte de doenças e provações. Mas, ao mesmo tempo, provava incomparável alegria, pois, desse jeito, sentia-se mais e mais em comunhão com seu Senhor crucificado e, neste Senhor, em comunhão com o “coração” de Deus mesmo e, no “coração” de Deus, em comunhão com todos os crucificados da sociedade e todas as criaturas… Por isso, como sempre fora em sua caminhada de contínua conversão, Francisco canta e convida a cantar a grandeza infinita do amor de Deus. Desse Deus que “quis estar com os seres perdidos, os foras-da-lei, os publicanos e os pecadores”, que “conviveu com eles e sentou-se à sua mesa”. Desse Deus que “por fim morreu com eles a morte dos condenados. O Evangelho era esta realidade inaudita: a revelação de um amor divino que nada de humano justifica e que se oferece prioritariamente aos que não podem se prevalecer nem da estima do mundo, nem das posições que ocupam na sociedade, nem de sua riqueza, nem de seu sucesso social, nem mesmo de seus méritos ou de suas virtudes, mas que esperam tudo unicamente da graça de Deus”.

Francisco canta e convida a cantar. Sua vida transforma-se em poesia, porque expressa o sonho mais profundo do ser humano-e-de-Deus, sonho de fraternidade universal. Compõe o famoso Cântico das Criaturas, “o canto de um homem que, durante toda sua vida, trabalhou, lutou, sofreu para que houvesse um pouco mais de fraternidade entre os homens e para que aparecesse, enfim, na sociedade de seu tempo, a humanidade de Deus”. A partir da comunhão profunda com esta “humanidade de Deus”, é que Francisco e seus companheiros “aprenderam a olhar os seres e as coisas, ingênua e fraternalmente, com simplicidade e cortesia. Deixaram de vê-los sob o ângulo de seu valor de venda, para considerá-los como criaturas de Deus, dignos de atenção em si mesmos. Assim descobriram o esplendor do mundo, o esplendor das coisas simples. Seu olhar se deteve, maravilhado, nas realidades mais humildes, mais cotidianas, que eram companheiras de sua vida de pobres: a luz, a água, o fogo, o vento, a terra. Sim, a terra de todos os dias, a terra mãe. Como era bela a seus olhos esta terra, vista para além de toda ambição e de toda vontade de poder! Deixava de ser um campo de luta para tornar-se o lugar da grande fraternidade dos seres: ‘Nossa irmã a Mãe Terra”.

Francisco canta e convida a cantar e celebrar o Amor criador e redentor, sobretudo quando percebe aproximar-se o momento de sua máxima comunhão com o mistério do Deus pobre e solidário, o momento da morte. O momento da máxima experiência de pobreza, pois aí Francisco fará de verdade a experiência de não ser mais dono de nada, nem mesmo da vida. Francisco canta e dá as boas-vindas a esta que ele chama também de “irmã”. Ela é para ele “a porta da vida”. E para celebrar a chegada deste momento de comunhão absoluta com a Pobreza, pede inclusive que deixem seu corpo despido sobre o chão por algum tempo. “E assim chegou a hora”, escreve Tomás de Celano, concluindo: “Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus”. E Boaventura: “Cumpridos, enfim, todos os desígnios de Deus em Francisco, sua alma santíssima livrou-se da carne para ser absorvida no abismo da claridade de Deus, e dormiu tranquilamente no Senhor”. Realiza-se nele o que havia pedido, parafraseando a oração do Pai-Nosso. “Venha a nós o vosso reino: para que reineis em nós por vossa graça e nos deixeis entrar no vosso reino, onde veremos a vós mesmo sem véu, teremos o amor perfeito a vós, a beatífica comunhão convosco, a fruição de vossa essência”.

Texto do livro “Herança Franciscana”, do capítulo “A experiência de Comunhão com o Mistério de Deus em Francisco de Assis”, de Frei José Ariovaldo da Silva, ofm.

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