30 de setembro de 2012

São Francisco, como o vejo.

Dom Aloísio Lorscheider, OFM (*) 

À medida que passam os anos, São Francisco merece maior atenção. Em nossos dias, sobretudo, com a redescoberta do lugar social do pobre na Igreja e no mundo, o interesse pelos ideais de São Francisco faz-se mais vivo. Como, porém, não disponho do tempo requerido para tal aprofundamento, penso que um testemunho meu, de como tenho visto em minha vida esta grande figura da hagiografia, possa também ser apreciado.

O meu contato com São Francisco
No seio de minha família tiveram maior influência os jesuítas. Em casa tinham lugar especial Santo Inácio e os três Mártires Rio-grandenses. Explica-se pela influência que os jesuítas tiveram entre os colonos de origem alemã.
Muito deve a Igreja no Rio Grande do Sul aos filhos de Santo Inácio. Comecei a conhecer São Francisco, quando, em 1934, entrei no Colégio Seráfico de São Francisco, em Taquari, RS. Passei no Seminário Menor oito anos. Foi neste período que foi aumentando em mim o conhecimento, a admiração e o amor pelo Poverello. Tínhamos no Seminário a Ordem Terceira Franciscana, hoje denominada Ordem Franciscana Secular. As reuniões mensais e o espírito que os nossos formadores, por seu exemplo e palavra, imprimiam à nossa orientação, ajudou muito. O exemplo e o ideal vividos com muito entusiasmo pelos meus formadores, padres e irmãos franciscanos holandeses, foram benéficos. Eles concretizavam para nós o Serafim de Assis. Mais tarde, o noviciado, os anos de preparação para a profissão solene, a graça de, na Itália, visitar os lugares mais queridos ao coração de São Francisco, concorreram para formar em mim uma imagem do Santo da Dama Pobreza e da Perfeita Alegria.

1. À imagem de Deus
Sempre fiquei muito impressionado e atraído pelo amor quente e apaixonado que São Francisco dedica a Deus. Parece que no beijo do leproso ele entendeu, como Saulo no caminho de Damasco, a doação total de Deus a nós em seu Filho Jesus Cristo. Custou a Francisco não só descer do cavalo fogoso que no momento montava, mas muito mais do cavalo do orgulho e da vaidade com que ele queria conquistar o título de grande e nobre. Foi no caminho que a luz de Deus entrou mais forte em seu íntimo. Foi o beijo ao doente rejeitado, nada grande e nada nobre aos olhos dos homens, que fez a Francisco descobrir o enorme amor de um Deus que nos dá todo o seu Filho: “Tanto Deus amou o mundo que lhe deu o seu Filho único….”. “Quem sou eu, quem sois Vós? Uma noite toda foi insuficiente para saborear esta realidade tão grande. Francisco embeveceu-se no amor divino. A transcendência de Deus manifestando-se na imanência da Encarnação encantou o coração de Francisco. Mais e mais ele se extasiava diante do Bom Senhor, do Altíssimo, do Sumo Bem, do Único Bem, de todo o Bem. E o que sentia ia-se tornando oração. Convém ler e meditar as orações que brotaram, espontâneas, desta alma toda repleta da imensa misericórdia do Senhor.
São Francisco ajuda-nos a redescobrir a verdadeira imagem de Deus e “a graça salvadora de Deus que se manifestou a todos os homens” (Tt 2,11). É nesta imagem bíblica de Deus, assimilada por São Francisco, que se deve procurar a sua devoção à Encarnação do Verbo (presépio), ao Santíssimo Sacramento, à Palavra de Deus, aos Sacerdotes e à Cruz do Senhor.

2. A sua Dama
Francisco viveu numa época conturbada. Fermentos de renovação dentro da Igreja; fermentos novos no mundo dos negócios e da política, onde a riqueza estava sendo vista como o grande valor da vida humana. Na Igreja é o tempo do Papa Inocêncio III. Tempo de muito poder e de muito fausto. Faziam-se sentir diversos movimentos de renovação a partir da pobreza. Infelizmente, tais movimentos queriam conseguir o seu objetivo colocando-se à margem daquele que por Cristo fora posto como Pedra, Pastor, Garantia da fé.
No mundo dos negócios e da política, as lutas entre os grandes partidos de então, guelfos e gibelinos, entre as comunas, desejando uma superar a outra em importância e força, entre as classes sociais, buscando os do comércio conquistar os privilégios da classe nobre. É o tempo fogoso da Cavalaria.
Francisco, por influência do próprio pai, estava metido nestas lutas de promoção. O “status” o atraía. Liderança não lhe faltava. Mas, na análise de sua pessoa, percebe-se que, no íntimo, outras forças o estavam trabalhando. Além da graça divina, que tinha os seus desígnios, uma sensibilidade muito forte em relação à realidade social e eclesiástica também jogava o seu papel. E foi assim que Francisco entendeu que o verdadeiro soberano era o seu Deus, que se revelava em Jesus Cristo pobre, pequeno, humilde. O importante não era ser “maior”, como ele com tantos do seu tempo pensavam, mas sim ser “menor”. Sem dúvida alguma a passagem bíblica: “Quem entre vocês quiser ser o maior faça-se o menor” (cf. Lc 22,26), mais tarde repetida aos seus frades, deve já antes ter ressoado no coração do Santo de Assis. Seja como for, Francisco se enamora da Pobreza, que se torna a sua Dama. Ele se  enamora tanto por ela, porque vê o próprio Jesus Cristo tomando-a por Esposa: “Embora rico, fez-se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). A formação paulina, num contexto de comunhão de bens (esmolas) entre as Igrejas, torna-se ela luz para uma inteligência mais profunda do mistério de Deus que se comunica ao mundo por seu Filho Jesus, o Filho do seu amor (Cl 1,13). E Francisco nele se inspira.
Começa, na Igreja, uma redescoberta do pobre, precisamente num período em que a Igreja parece ter atingido a culminância do seu poder e de sua influência no mundo. Poder espiritual e poder temporal estavam firmemente enfeixados nas mãos de um Papa que se soubera impor a príncipes e reis, dando ao Sacro Império Romano esplendores nunca dantes vistos e vividos. E foi no coração deste grande monarca que Francisco coloca o seu modo de vida evangélica. Ele nada mais quer do que observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, Evangelho que tem a sua conotação específica na vivência da pobreza. Pobreza não à margem da Igreja Romana, mas pobreza no coração da Igreja Romana, em obediência total ao Papa e seus sucessores. Quando Francisco prescreve isto a seus frades, já era o Papa Honório, mas quando Francisco começou era Inocêncio que dominava.
Esta atitude de São Francisco foi obra do Espírito Santo. Foi autêntica intuição evangélica de alguém que era todo poesia. As almas dos poetas são as que, sensíveis, enxergam mais longe.
Em nossos dias revivemos esta redescoberta evangélica do pobre. Partimos de uma realidade diferente daquela do século 12, porque, hoje, nos angustia a injustiça institucionalizada, a injustiça que na sociedade, se tornou estrutura, ao passo que então a riqueza dentro da Igreja e os anseios de grandeza temporal dominavam os homens. Então, como hoje, as resistências dentro e fora da Igreja não são poucas. Entretanto, a profética opção preferencial e solidária pelos pobres corresponde inteiramente ao ideal de São Francisco, porque responde completamente ao Evangelho. E Francisco outra coisa não queria do que o Evangelho em sua mais completa pureza, sem glosa, sem glosa, sem glosa…
O estilo de vida simples, sóbrio e austero que Puebla preconizou para todos os cristãos de nossos dias, em identificação sempre mais perfeita com o Cristo pobre e os pobres, exprime sem ambiguidade o que Francisco, já no século 12, sonhava e via como verdadeira renovação evangélica. Se, hoje, partimos de outra realidade para a vivência a pobreza evangélica, o fundamento continua sempre o mesmo: Cristo que, sendo rico, se fez pobre; que, sabendo não ser um roubo para Ele o ser igual a Deus, esvaziou-se, fez-se servo, fez-se em tudo solidário com os homens, obediente até a morte e morte de cruz (cf. Fl 2,5-9).

3. A perfeita alegria
São Francisco é conhecido como sendo o São Francisco das Chagas, além de ser o São Francisco de Assis. As chagas do Senhor Jesus mostram outra faceta da rica personalidade de Francisco: um apaixonado pela paixão de Jesus Cristo, um apaixonado pela cruz do Senhor. Tão grande a sua paixão que mereceu experimentar ao vivo na própria carne a paixão sobre a qual tanto meditara e chorara a ponto de ter ficado quase cego. O amor de Deus na Encarnação torna-se, para nós, o mais concreto possível na doação total que a cruz simboliza: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15,13).
Penso que na mística franciscana da Paixão do Senhor se deva procurar o sentido mais profundo da perfeita alegria que os “Fioretti” nos retratam com forma tão viva e poética. Ser rejeitado pelos próprios irmãos, ser afastado do convívio deles como elemento perigoso, como perturbador da paz e do silêncio de nossa casa, e saber aceitá-lo sem querer mal a quem desconfia de nós, nos machuca, nos revolve na condição mais miserável – é identificar-se com Jesus rejeitado, escarnecido, esbofeteado, carregado com a cruz, crucificado. A perfeita alegria está, pois, na mais perfeita identificação com o Cristo, o Servo Sofredor de Javé.
Parece que o mundo de hoje nos oferece inúmeras oportunidades para vivermos este capítulo da perfeita alegria. Numa época de renovação, exige-se muito espírito de sacrifício, muita renúncia, muita assimilação com a paixão e morte de Jesus Cristo, com a oração sincera: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
4. Homem livre
Este tríplice olhar evangélico de Francisco – imagem de Deus, Dama Pobreza, perfeita Alegria – fez de Francisco um homem livre, amarrado a ninguém, levando-o a redescobrir a pureza original das criaturas. Indubitavelmente, o Cântico das Criaturas expressa esta liberdade interior e exterior conseguida pelo Santo de Assis. Só uma vida inteiramente aberta a Deus e ao Irmão é capaz de dar à criatura humana o gozo da libertação, que conduz à liberdade pura e santa com que Deus nos criou.

Conclusão
O próprio São Francisco escreveu a conclusão. Dando aos seus seguidores o nome de FRADES MENORES, ele disse tudo. O ser “frade”, o ser “irmão” e o ser “menor”, o ser “pequeno”, o ser “humilde”, o ser “servo” de todos, exprime todo o ideal franciscano, com o seu fundamento em Deus, o único Absoluto, sem ídolos, em total doação. Se os filhos e filhas de São Francisco, nas várias Ordens, Congregações, Institutos, vivessem, ao máximo, este ideal, novo sopro evangélico renovador purificaria o ar da Igreja e do Mundo.


(*) Dom Aloísio Lorscheider, OFM, escreveu este artigo para a Revista
“Grande Sinal” quando era Cardeal-Arcebispo de Fortaleza, em 1982.


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