OS SALMOS EM MINHA VIDA
Por Yves Congar*
O presente texto tem como autor um dos maiores teólogos do século XX, o dominicano Yves Congar. Trata-se de uma reflexão-meditação a respeito dos salmos na vida do cristão. Congar procura refletir teologicamente a respeito do sentido da recitação do conteúdo do saltério por aqueles e aquelas que são discípulos de Cristo. O texto apareceu na revista La Vie Spirituelle, janvier, 2008, n. 775, p. 115-120. A tradução foi preparada pela Redação desta revista. O conteúdo deste artigo nos coloca a linha de tantos empenhos de maior vivência da Palavra de Deus em nossas vidas.
Não poucas pessoas que buscam rezar de verdade, dizem ter dificuldade em compreender os salmos. Deparam com situações que lhes são estranhas, ou com motivações religiosas que não podem assumir como tais. Os salmos apontariam para um mundo literário, cultural e mesmo religioso diferente e distante. Ficamos admirados que a Igreja cristã tenha, desde as suas origens, guardado os salmos como expressão da sua oração. E foi exatamente o que ela fez. Os Padres da Igreja comentaram os salmos; através deles, durante séculos, se aprendeu a ler; a liturgia se tece com seus versículos; a santificação das horas no Ofício dos monges, religiosos, religiosas, sacerdotes e numerosos fiéis é confiada aos salmos.
Num primeiro momento pode-se ficar admirado que os cristãos tenham optado na questão da oração por textos judaicos. Certamente não o teriam feito se, de uma maneira ou outra, estes textos não tivessem relação com Cristo. Jesus, na verdade, afirma que as Escrituras falam dele, referindo-se expressamente aos salmos (Lc 24,27 e 44-46; Jo 5,39 e 46). Os apóstolos, e depois deles os Padres da Igreja e os Antigos, não leram a história de Jesus apontada pelas Escrituras judaicas (Ver Jo 1,45; 22,22; 12, 16-41; 19,28; 20,9)? Os próprios judeus, ao longo do Antigo Testamento, se serviram de um procedimento de releitura de sua própria história e de seus próprios textos. Assim fizeram no tocante aos salmos depois da volta do exílio que constituiu para eles uma nova esperança de libertação e de salvação, em novas condições de pobreza e de fraqueza, de inserção na história do mundo, esperança messiânica e escatológica. Não é de admirar, pois, que os cristãos tenham cristianizado e mesmo cristologizado os salmos. “O saltério, diz Santo Hilário, é como o corpo de Cristo, pelo qual o profeta fala e canta...” (Prólogo ao seu comentário sobre os salmos).
A linguagem adequada para me dirigir a Deus
Em sua trama literária, e para além dela, os salmos são também a expressão de nossa fé no Deus vivo. Nossa prática dos salmos vale tanto quanto vale nossa fé no Deus da Bíblia, como ligação absoluta a Ele no amor e a representação que fazemos dele. O Deus da Bíblia é ao mesmo tempo criador e redentor. As magnalia Dei que os salmos cantam se referem ao mesmo tempo à criação bem como à libertação e à história da salvação. Há salmos dos dois tipos. Por vezes até os mesmos versículos unem os dois temas. O mais característico do Deus vivo é que nunca dele se fala sem conceder-lhe um atributo de ação. Ele é sempre o Deus que...
Fundamentalmente, Deus é quem fez Israel sair do Egito. Os salmos muitas vezes evocam tal história como louvor ou confissão de esperança... O próprio nome Yahvé que ocorre 670 vezes no saltério, não levando em conta os compreendidos entre os salmos 42 a 83, onde é substituído por Elohim, designa o Deus. Sua tradução por “Senhor” nos faz correr o risco de não evocar suas conotações mais significativas. Segundo as explicações claras feitas a Moisés (Ex 3,14), ele quer dizer: Sou aí convosco e para vós; serei o que serei, havereis de ver a partir das intervenções em vosso favor. “Yahvé” não designa tanto “Aquele que é, “o Eterno”, embora tais nuanças não devam ser excluídas, mas o Deus vivo que escolhe,chama, se consagra ao povo, vigia sobre ele, o conduz, o castiga, lhe outorga graças, em breve, o Deus da economia salutar. Este é o Deus dos salmos. E a oração dos salmos consiste em dizer-lhe, através de todas as circunstâncias, sejam elas de desgraça ou de alegria, de pedido de socorro ou de ação de graças: tu és meu Deus, serás sempre meu Deus.
Há os que tropeçam nos salmos de imprecação ou de vingança (por exemplo: 5, 11, 55 etc.). Serão eles também compreendidos a partir do ponto de vista de Deus no concernente à justiça ou proteção de que formalmente tratam. Evidentemente que o detalhe concreto nos males que desejam deverá ser entendido a partir de um gênero literário situado e datado. São conhecidos textos paralelos no vocabulário de certos povos ainda hoje. Serão entendidos no contexto da luta pelo Reino de Deus que, na verdade, tem inimigos. Tais salmos são também teologais. Relevam da visão bíblica segundo a qual há dois sujeitos em atividade: Deus e Satanás: dualismo não metafísico, porque nesse ponto de vista não há dúvidas do monoteísmo bíblico ser soberano, mas dualismo ético, e nesse sentido, existencial.
As pessoas sentem dificuldade, ainda, com outros salmos. Há os que não exprimem nossas estados de alma, quando tomados isoladamente. Um bom comentário pode nos ajudar, mas não convém exagerar a dificuldade. Eles serão tomados no grande movimento global do saltério teologal: “Tu és meu Deus”.
“Meu Deus”. Eis aí uma expressão extremamente freqüente nos salmos. Não tem o sentido de alguns relatos mais antigos em que “meu” excluiria o Deus de um outro povo ou de outro clã. A expressão significa a comunidade que a eleição e a aliança estabeleceram entre Yahvé e seu povo ou seus fiéis. Como nos profetas, é ao Deus ao qual se faz fé, ao qual se clama com confiança, que se louva na alegria do coração. “Meu Deus” se diz com o coração.
Independente desta expressão, perto de 80 salmos falam na primeira pessoa, “eu” (...) Trata-se do “eu” de quem vive e exprime o relacionamento religioso para com o Deus vivo. É o autor do salmo, ou quem salmodia, é o eu que o atualiza na oração, é a comunhão dos fiéis, é o nós, é a ecclesia, é o próprio Cristo (ver Mt 26,30). In multus unus, um só nos muitos, diz Santo Agostinho, mas se poderia inverter a fórmula, multi in uno, novamente citando com Santo Agostinho, o Salmo 119,63, “fazendo eu parte daqueles que te temem”. Em termos de teologia cristã, é o Espírito Santo que faz a unidade de todos os que invocam a Deus. Ele atualiza uma oração que ele mesmo inspirou no coração do orante tomado isoladamente, bem como na comunidade fiel, tanto quanto na oração dos piedosos israelitas, também na Igreja que é o Corpo de Cristo.
Rezar os salmos como cristãos
Como já dissemos, há os que estranham que os salmos tenham se tornado a oração dos cristãos, e mesmo da liturgia pública da Igreja (...). Ora, os salmos constituem a melhor escola em que a atitude de fé que realiza o relacionamento religioso (tal como é vivido e atestado na Antiga Aliança) possa formar-se e alimentar-se. A epístola aos Hebreus não tem outra teologia da fé senão a da história dos patriarcas. Os valores religiosos mais profundos e mais delicados se encontram nos salmos (...). Evidentemente que invocamos hoje Deus como Pai num sentido diferente do título que era atribuído a Yahvé na antiga Disposição. A invocação cristã diz mais, mas assume toda a substância dos relacionamentos religiosos dos salmos judaicos...
O relacionamento religioso a que os referimos se realiza, na Nova Aliança, no Cristo, pelo Espírito Santo. Rezamos os salmos na qualidade de cristãos. Será inevitável e necessário operar uma “cristianização” dos mesmos. Homem da Tradição, frequentador dos Padres e da santa liturgia, como não ouviremos nos salmos a voz de Cristo? Interessamo-nos sobretudo na recitação cotidiana dos salmos no Ofício e na oração pessoal, enquanto a cristoligização clássica concerne de modo especial a celebração dos mistérios de Cristo. Rezamos os salmos como expressão desta referência de nossa vida a Deus precisamente no que consiste nosso sacrifício espiritual (Rm 12,1). Este é agradável a Deus por meio de Jesus Cristo (cf. 1Pe 2,5). Se estes salmos exprimem o relacionamento religioso, o “ad Deum” de toda a nossa vida e de toda a vida do povo de Deus, este “ad Deum”, este “para Deus” necessariamente será cristão.
Deus se revelou em Jesus Cristo. O “Eu sou”, “Eu serei quem serei” (de Ex 3.14 tornou-se “Eu sou o pão da vida (Jo 8,35), “a luz do mundo” (8,12), a porta das ovelhas... o bom pastor (10,7 e 11), “a ressurreição” (11,25), “o caminho, a verdade e a vida” (14,6), “a verdadeira vide” (15,1). O “Eu serei convosco” de Ex 3,12, se com concretizou no “Estarei convosco até a consumação dos séculos” de Mt 28,20. O Nome que é preciso invocar para ser salvo (Jl 3,5) é o Senhor Jesus (Rm 10,13; At 2,21). Ao “É diante de mim que todo joelho dobrará” (de Is 45,23) deve-se acrescentar com a vinda de Cristo “Deus o exaltou para que... perante o nome de Jesus se dobre reverente todo joelho, seja nos céus, na terra ou nos abismos” do hino cristológico de Filipenses 2,9-10. O relacionamento de Deus com os seus conhece profunda mudança em Cristo. Passa pelo “abaixamento” de Deus, que veio a nós na forma do Servo. Rezando os salmos como discípulos de Jesus, membros de seu Corpo, com uma alma cristã, certamente não os rezamos como fizeram ou fazem ainda os judeus. A tradução grega dos Setenta e a latina da Vulgata, procuraram nuançar certas expressões. Não se trata de adocicar ou enfraquecer o texto. Trata-se de fazer aparecer toda a verdade dos textos de Deus: na esperança e inconfundível convicção de Israel, no grito das provações, na aproximação da humildade e misericórdia realizada por meio de Jesus, na perfeição de sua obediência onde ele encontrou sua glória.
*Yves Congar é um dos maiores teólogos do século XX.
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