Por Frei Hipólito Martendal
1. São Francisco encanta muita gente. Em artigos,
referi-me algumas vezes à atração, ao fascínio que São Francisco exerce
sobre pessoas de diversas religiões e até mesmo sem religião. Lembrava
que o título de “A Personalidade do Milênio”, conferido pelos leitores
do “New York Times”, não era bem uma homenagem de católicos fervorosos
devotos do Poverello de Assis. Boa parte dos leitores é constituída de
protestantes. Outros são católicos mais ou menos frios. Existem leitores
materialistas e agnósticos (que em nada creem). Por que, então, votar
em São Francisco, um modelo tão pouco moderno, tão antimaterialista e
tão católico?
2. São Francisco encarnou a essência do cristianismo.
Aí está a resposta. São Francisco foi um dos raros seres humanos a
compreender e a viver profundamente o cristianismo tal qual foi
imaginado e vivido por Jesus. Isso significa que o Cristianismo em sua
essência é belo e pode exercer poderosa influência sobre o ser humano. O
problema está em que raras são as pessoas capazes de viver bem a alma
do Cristianismo. Por isso, nossa luz, que devia ser um farol,
transforma-se em uma velinha bruxuleante, como aquelas ridículas
“velas-de-sete-dias” que toda hora se apagam e, quando acesas, iluminam
quase nada.
3. O cristianismo em sua essência é humano. Uma das
coisas que sempre me atraíram para o Cristianismo foi minha convicção de
que Cristianismo e Humanismo têm muito em comum. Existe, em nossa
cultura, forte tendência a apresentar o ser humano, a humanidade, a
materialidade de um lado e Deus, o espírito, Jesus e o Cristianismo do
outro, como dois mundos de difícil conciliação e entendimento. Para
alguém se tornar cristão parece que é necessário renunciar à sua própria
natureza e violentar a todas as suas tendências mais profundas. É mais
ou menos como se Deus tivesse criado o ser humano e este tivesse fugido
do controle e das intenções do Criador. Um filósofo, não me recordo
agora quem, afirmou que o ser humano é um projeto que deu errado.
Mais cedo ou mais tarde precisamos fazer uma profunda revisão sobre a
influência do maniqueísmo em nosso pensamento cristão. É necessário
repensar toda a doutrina tradicional sobre o pecado original. Tal qual
ela é entendida tem como conseqüência aceitar a idéia de que Deus foi um
Criador inepto, incompetente, um aprendiz de feiticeiro desastrado. E o
ser humano, como seu feitiço, teria se voltado contra Ele.
Claro que nós, humanos, podemos nos voltar contra Deus. Mas isso
acontece não por inépcia divina, mas como fruto da sabedoria divina, por
ter-nos criados livres. Deus, melhor do que ninguém, sabe que nenhuma
adesão, nenhum amor, sem liberdade tem sentido. Então, ou Ele, Deus,
criaria o homem livre, ou nunca seria amado por nenhuma de suas
criaturas!
4. Convergências entre o humano e o cristão. Estou
convencido de que existem muitos elementos em comum entre estas duas
realidades. Em primeiro lugar, temos a própria liberdade como um valor
essencial para dar sentido a qualquer ato humano autêntico. Deus nos
criou para a liberdade. Em toda a história da raça humana, nenhuma
virtude, nenhum ideal levou tantas pessoas até o sacrifício da própria
vida, como a liberdade. Ela está entre os anseios maiores de todo ser
humano autêntico, não escravizado por vícios ou desejos patológicos de
posse. Jesus fala da liberdade como uma conquista a ser alcançada
através da verdade. Muitos pensadores cristãos veem em algumas cartas de
São Paulo uma espécie de “Evangelho da Liberdade”. Uma coisa é certa: a
liberdade faz parte da essência do ser humano enquanto criatura de Deus
e enquanto cristão.
Outro item importante dos ideais do ser humano simplesmente enquanto
gente e enquanto cristão é o ideal do casamento indissolúvel até à
morte. Parece estranho, não é? Não vamos falar do que a mídia pondera
sobre o assunto. Mas quando recorremos às lendas, aos mitos, aos grandes
romances, sempre aparece, em todo amante, em cada amada, o desejo, o
sonho, a fantasia de um amor e comunhão eternos! Deus criou o ser humano
para que tenha a posse eterna da alegria e da felicidade. Por isso, o
sonho de realizações eternas faz parte de nossa natureza.
O exemplo que vou apresentar agora é ainda mais surpreendente. Uma
vez li um artigo com o seguinte título: “O Cérebro que é bom não pensa”.
Maravilhado com a leitura, pus-me a pensar nas muitas situações de
vida e das atividades humanas nas quais o cérebro pensante precisa ser
desligado para conseguir-se um bom desempenho. Por exemplo, tentar
dormir pensando na necessidade de dormir, provavelmente, resultará numa
bela insônia. Mesmo o cestinha, numa partida de basquete, acerta mais
lances de curta e média distâncias em ataques rapidíssimos do que em
lances livres parado, a curta distância, sob os olhares de todos e com
muito tempo para pensar. Um artista preocupado com seu desempenho comete
muito mais falhas do que aquele que se entrega à arte sem nada pensar.
Em situações de emergência e grande perigo, o cérebro de um bom
motorista realiza cálculos supercomplexos em frações de segundos e
comanda movimentos de grande precisão sem nada poder pensar. Sem isso
muito mais gente morreria nas estradas e ruas.
Em perfeita sintonia com esses aspectos da natureza humana, muitas
das melhores atividades e atitudes cristãs ocorrem sem cálculos, sem
raciocínios. São frutos de puras intuições e de impulsos. Às vezes, só
ocorrem em estados alterados de consciência, estados meio oníricos, meio
inebriados. Sem isso não existe contemplação, a forma mais completa de
oração e experiência com Deus. Mas até em situações bem concretas e
materiais, como dar uma esmola, socorrer o necessitado, é melhor que as
coisas se deem sem cálculos e raciocínios “que sua mão esquerda não
saiba o que faz a direita”, diz Jesus.
5. São Francisco é a síntese. Já é lugar-comum
dizer-se que Francisco é o mais santo dos homens e o mais humano dos
santos. Já afirmei uma vez que São Francisco é uma espécie de milagre
vivo. Apesar do maniqueísmo virulento de sua época, que ditava o
desprezo de toda a materialidade e da natureza humana, apesar da feroz
penitência que se impôs, Francisco perseguiu e viveu a alegria. Apesar
de seu horror ao pecado, serviu a toda gente com imensa inocência e
ternura. Até o assaltante era chamado de “irmão ladrão”, a quem o
guardião do convento devia dar alimento quando batesse à porta.
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