1. Começamos um ano novo. Virando uma página do livro do mundo e de nossa vida olhamos para o amanhã. E no tempo que vai passando vamos tentando, nós que resolvemos ser discípulos do Ressuscitado, aproximarmo-nos da adorável figura de Jesus, vivo, ressuscitado, que nos interpela e nos quer ser íntimo de nós. Falar em intimidade com o Cristo do peito aberto não significa que venhamos a nos afastar do mundo e das tarefas urgentes a serem exercidas nos campos desafiadores no hoje do mundo e da Igreja. Não se trata de um intimismo barato. O que não se discute é que, dia a dia, sejamos dóceis em contemplar o Coração do Senhor e seu amor sem limites. Vamos nos servir de um texto de Santo Anselmo publicado no Lecionário Monástico II, p. 453-454 para fazer algumas reflexões sobre esse Jesus que refaz nossa vida. Pediria que os leitores não estranhassem a “plasticidade” e “crueza” do vocabulário usado. Anselmo se serve linguagem dos amantes tão típica dos místicos quando precisam descrever suas experiências interiores.
2. “Meigo, com a cabeça inclinada. Ao inclinar a cabeça na cruz, parece dizer à amada: O minha amada, quantas vezes desejaste um beijo de meus lábios, dizendo-me pela voz de meus companheiros: Beija-me com beijos de tua boca(Ct 1,2). Estou preparado, inclino minha cabeça; ofereço meus lábios, beija-os tanto quanto desejares. Não digas na ignorância de teu coração: Não quero um beijo despojado de atrativo e beleza, mas aquele beijo glorioso com que os anjos sempre se regozijam no céu. Não erres assim, pois se não beijares primeiro aqueles lábios, nunca poderás chegar a estes últimos. Portanto, beija os lábios que agora te ofereço porque, mesmo sem atrativo nem beleza, não lhes falta graça”. Com efeito, há um convite a amar aquele que beleza não tem, com o semblante desfigurado.
3. Ao discípulo Cristo se apresenta como aquele que pode ser amado, porque ama primeiro. Jesus está com a cabeça inclinada. Seus lábios não têm expressão de beleza; apresentam-se macerados pelo sofrimento. Anselmo insinua que, no momento, haveremos de nos deter no Cristo sofredor, nesse que antes da morte de cruz, teve o corpo lacerado, a cabeça ensanguentada e o corpo alquebrado. No momento presente quando ainda somos peregrinos a contemplação do Amado que sofre é de fundamental importância. Ela pode levar a uma transformação do interior. Não simplesmente provocar uma fugaz emoção, mas levar à consciência de que o Filho de Deus feito homem, esposo querido de nossa alma, se nos apresenta desfigurado. Uma tal contemplação pode deslanchar um processo de conversão.
4. Clara de Assis, em Carta a Inês de Praga tem o mesmo vocabulário nupcial. Usa a imagem do espelho. Quer que Inês contemple Cristo no espelho: “No meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonha (…) Contemplando suas indizíveis delícias, riquezas e honras perpétuas, proclame, suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor: Arrasta-me atrás de ti! Corramos no odor de teus balsamos (Ct 1,3), ó esposo celeste! Vou correr sem desfalecer’, até me introduzires na tua adega (Ct 2,4) até que a tua esquerda esteja sobre a minha cabeça, sua direita de me abrace (Ct 2,6) e toda feliz me dês o beijo mais feliz de tua boca (Ct 1,1) ( 4ª. carta de Clara a Inês).
5. Chiara Giovanna Cremaschi, comentando essa entrega esponsal de Clara a Cristo escreve: “A pedra angular de todo o edifício religioso, de toda a vida espiritual de Clara e de suas irmãs se resume no estarem elas ligadas por um afeto pessoal a Jesus Cristo, com amor ardente e apaixonado e sem contestação”. Em suas cartas a Inês de Praga Clara procurou despertar e desenvolver o desejo apaixonado da união com Cristo. Tal desejo que se exprime na imitação de Cristo é a razão de seu corajoso abraçar do Cristo pobre.
6. Estamos de cheio no vocabulário místico. Tanto no texto de Anselmo quanto no de Clara a alma que contempla o aniquilamento do Mestre é levada ao êxtase do amor. Anselmo fala dos braços abertos do Senhor. Com essa postura o Senhor dá a entender que quer nosso abraço. Temos em mente a representação de Francisco de Assis com o crucificado desprendendo um de seus braços e enlaçando o Poverello. Santo Anselmo conclui, colocando nos lábios do Cristo do Coração aberto, as seguintes palavras: “Vós todos que estais cansados e carregados de fardos vinde vos refazer em meus braços, com meus abraços. Vede que eu estou preparado para vos reunir todos entre meus braços”. Somos convidados a refazer nossa vida unindo-se a esse que tem os braços abertos para o abraço do perdão, do descanso depois do cansaço, daquele que nos ajuda a carregar os fardos.
7. Entramos no ano novo e fazemos o propósito de nos aproximar mais e mais desse Cristo . Temos nossa vida, nossas atividades. Uns trabalham muitas horas durante o dia são casados, solteiros, pais de famílias, sadios ou doentes. Outros são religiosos. No coração de tudo isso vibram as cordas de uma intimidade fecunda com o Cristo do coração aberto e dos braços apertos esperando sempre nosso olhar reconhecido. Terminamos ainda citando Anselmo: “Só procuro por vós, mesmo que nenhuma recompensa me seja prometida. Não existissem o inferno e o paraíso, diante da vossa suave bondade, e unicamente por vós, ainda desejaria unir-me a vós. Vós sois o me constante pensar, minha palavra, meu agir”. É esse Jesus que refaz nossa vida.
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