Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Uma lei fundamental precede e ilumina toda outra lei, civil, moral ou religiosa. Assim ela se enuncia:
Artigo único: É preciso viver.
Não há artigo segundo.
Necessário viver. Com avidez. Com intensidade. Só é verdadeiro o que se vive.
Se a fé em Deus e em Jesus ressuscitado fosse um entrave à vida, eu recusaria a fé.
O que é maravilhoso na fé é que ela não cessa de aumentar a exigência, o combate, o fervor de viver, de viver até a embriaguez: e a paixão de ser homem, a paixão de ser mulher, a celebração do casal, e todos os esplendores da carne e do sangue, e todas as luzes, o rir e o soluçar.
Viver. Abraçar. Mesmo a infelicidade.
Viver: ter os braços dirigidos aos músicos e como maestro decidir o momento em que a vida vai dançar, cantar, gritar, chorar talvez. Mas viver.
Escrevo estas linhas com o coração impregnado do evangelho, do evangelho do Gólgota e o evangelho da Ressurreição.
Necessário viver.
Todas as promessas de Jesus no evangelho são promessas de vida.
Necessário ousar viver.
Para saber viver é preciso ousar viver.Jacques Leclerc
Debout sur le soleil
Seuil, Paris, 1980, p. 13-14
1. Vida, viver, vida espiritual, vida interior. Há esse deitar, levantar, correr, comprar, vender, chorar, esperar, temer, alegrar-se. Há a vida desse casal aparentemente tão ajustado, respirando harmonia. Há essa religiosa de roupas simples, olhar sereno, já quase envelhecida de tudo, mostrando, para além das rugas do rosto, viço e vigor. Há esse senhor que vem da roça comprar mantimentos na cidade e volta pensando sempre na vida dos seus. Há esse mendigo, deitado sob a marquise, com um naco de pão na mão e ajeitando seu cobertor para dormir. Vida. O que conta é viver. Nada além de viver. Mas será preciso viver em profundidade. Não basta apenas dormir, levantar, comer, correr, sofrer. É preciso dar um sentido à vida.
2. A expressão “vida espiritual” é ampla e pode ser ambígua. Refere-se a todos os homens e a cada homem, seja ele crente ou não, cristão ou adepto de outras trilhas religiosas, seja ele leigo casado ou religioso consagrado. Trata-se de uma dimensão da experiência humana. Todo homem vive espiritualmente. Podemos dizer que vida espiritual aparece quando surge pergunta pelo sentido, quando homem instigado pelo conhecimento de si mesmo, começa a explorar aquilo que lhe é interior, a observar o mundo, a escutar, a pensar, a meditar, a escolher, a decidir, a assumir sentimentos e comportamentos. Nesse momento começa nele a vida espiritual.
3. “O fundamento da vida espiritual é a exigência de sentido que habita o homem. Para encontrar esse sentido será necessário buscar, fazer experiências em profundidade. Por isso, a vida espiritual também pode ser designada de vida interior. Quando pensamos na vida espiritual de uma pessoa, procuramos detectar aquilo de mais profundo que existe nela, suas últimas motivações, seu fundamento vital, seus ideais” (Enzo Bianchi, La vie spirituelle chrétienne, in Vie consacrée, 2000, n.1, p. 36).
4. “A vida espiritual não é um patamar de superestruturas inúteis a serem acrescentadas à nossa vida, à nossa idade adulta. A vida espiritual abrange a totalidade da vida, mesmo em seus pormenores cotidianos. Vida essa que se acha como que trabalhada por um convite para buscar sua qualidade, sua profundidade e sua realização. Quem foi desperto para a vida espiritual e pressentiu esse apelo não pode, sem mais nem menos, libertar-se dele. Se vier a rejeitá-lo estará perdendo uma oportunidade única de viver. Acolher esse convite é uma decisão pessoal. Mas ainda não é tudo. Será preciso perseverança, palmilhar com coragem tal caminho, colocar decididamente nele os pés. Em outras palavras, trata-se de encontrar uma sabedoria” (Fêtes et Saisons, n. 258, p. 5).
5. Viver espiritualmente é viver simplesmente a vida de todos os dias. Deus aparece no tecido do cotidiano. “Viver humanamente é uma aventura: difícil, arriscada, dolorosa, alegre. Entre o nascimento e a morte, quantos acontecimentos, quanto amor, quantos medos, quantas feridas, quantas curas, quantos fracassos e ressurreições, conflitos, reconciliações, dúvidas e iluminações. Quanto trabalho para viver, quanta luta, quanta busca pela verdade, quanta tentação de morrer. Mas também quanta coragem. A coragem de viver não seria a coisa mais difundida no mundo? Ora, é precisamente nesse borbulhar humano que Deus resolve vir ao nosso encontro para acompanhar e transfigurar a aventura de nossa vida. O próprio Espírito dá testemunho a nosso espírito que somos filhos de Deus (Rm 8,16)” (Régine du Charlat, Qu’est-ce qui fonde la vie spirituelle? , in Croire Aujourd’hui, n. 140, p.23).
6. Num gênero literário de carta a um amigo, Enzo Bianchi, líder da Comunidade de Bose na Itália, já citado anteriormente, assim descreve a vida interior: “Você decidiu me escrever, porque anda se questionando, nos últimos tempos, a respeito do sentido da sua vida e escrevendo que gostaria de ter mais tempo para si mesmo, para pensar naquilo que é essencial na vida e que merece ser vivido. Suas interrogações exprimem essa exigência profunda de nosso espírito, ou seja, a da vida interior. Cedo ou tarde, essa questão se torna muito viva dentro de cada um porque não vivemos apenas do exterior, projetando-nos fora de nós mesmos, numa contínua “fuga” em que a intensidade das emoções toma o lugar da plenitude de vida. O homem é um “fora”, mas é também um “dentro”. A Bíblia fala de coração. Nós falamos de consciência, de foro íntimo. Não sou totalmente claro, nem evidente para mim mesmo. Sou um mistério. Conheço-me apenas parcialmente. Para viver plenamente precisamos levar em consideração nosso interior”. (Qu’est-ce que la vie intérieure?)
7. Há uma pergunta que precisamos responder com toda coragem, mesmo com dificuldade; Quem sou eu? Será precisamente ela que vai abrir o caminho para a vida interior. Precisamos levar a sério nossa unicidade de corpo e espírito, de exterior e de interior, de apetites do corpo e de desejos pungentes e poderosos da alma. Ao longo do tempo da vida, frequentando nosso interior, vamos descobrindo ou construindo nossa identidade. Cada um é chamado a ser ele mesmo e não copiar outros. Necessário será escutar os abismos interiores e poder realizar suas solicitações. Assim, se pode dizer que levar uma vida interior é caminhar na direção de um sentido, caminhar na direção de um tornarmo-nos nós mesmos, de não vivemos por viver.
8. Trata-se de sair da superfície e da epiderme e tentar refletir, atinar com o sentido das coisas de todos os dias, dos movimentos de nosso coração, das questões que vamos colocando nas diferentes estações de nossa vida. Trata-se de um trabalho de levar a sério a própria unicidade. Voltamos a Enzo em sua carta: “A vida interior exige coragem. É como o começo de uma viagem, não tanto exterior, mas em profundidade, não fora de você, mas em seu interior. E se a perturbação que você experimenta no começo, diante de uma paisagem interior desconhecida, causa receio você vai tomar consciência de que se trata da viagem mais longa e mais penosa, mesmo sem percorrer um quilômetro que seja. Coragem não somente para interrogar-se, mas também para deixar interrogar-se, acolher os acontecimentos da vida como questões que são dirigidas a você: a doença que altera completamente a vida de uma pessoa amada, a morte repentina de um amigo, o casamento de um conhecido, um nascimento que trouxe alegria a um casal conhecido, como também os acontecimentos cotidianos, menos visíveis e menos chocantes que constituem a trama de nosso dia a dia… Trata-se de vida ou morte, de alegria ou de sofrimento”. A vida interior nos leva a pensar em tudo isso e a projetar Deus em tudo. Falamos, então, de viver à luz da fé.
9. Não podem ter acesso a essa dimensão de interioridade os que vivem na superfície das coisas e na busca desenfreada de toda sorte de satisfações. Uma Carta Pastoral de bispos da Espanha fala da falta de interioridade: “A fé se debilita por falta de interioridade. Cada vez há menos espaço para o espírito em nossa vida diária. Muitos consideram a “vida interior” como algo perfeitamente inútil e supérfluo. As vidas são organizadas somente a partir do exterior. Quase tudo o que as pessoas fazem tem como objetivo alimentar a personalidade externa e superficial. Por outra parte, a vida do espírito aparece tão desprestigiada que facilmente é classificada de evasão qualquer empenho de cultivar o mundo interior. Privada de interioridade, a fé se extingue. Enchemo-nos de projetos, ocupações e expectativas, mas o “homem interior” se debilita. Para que a fé seja fonte de luz e de vida, o ser humano necessita penetrar em seu próprio mistério e chegar ao coração de sua vida lá onde é totalmente ele diante de Deus. Quando a pessoa perde o contato com o “nível transcendente” de seu ser, a experiência religiosa se apaga, mesmo continuando a praticar uma “religião externa”. São muitos os cristãos que desconhecem o desejo do Absoluto, não vivem a experiência de uma comunicação pessoal com ele. Vivem buscando segurança religiosa em crenças e práticas a seu alcance, sem penetrar num relacionamento vivo com a realidade misteriosa de Deus”.
10. Somos convidados a fazer um viagem ao nosso interior e tentar escutar o famoso “Conhece-te a ti mesmo!” Esse empenho pede interiorização, uma vida interior, uma integração de experiências e acontecimentos que nos permita chegar a interpretar quem somos nós. As perguntas aí estão: Quem somos nós? Para onde vamos? Que fogo é esse que arde em nosso coração? Quem são os outros para nós? Na medida em que vamos tentando responder a essas e outras questões. Os que visitam seu interior têm melhores condições de compreender o que vem a ser uma vida espiritual cristã.
EXTRAÍDO DE: http://www.franciscanos.org.br/n/?p=10507
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