18 de julho de 2012

Quando o Senhor ocupa o espaço todo de uma vida

Centralidade da fé e conversão do coração (I)

Nos capítulos de nossa “leitura espiritual” deste ano de 2012, estamos refletindo sobre as fontes da espiritualidade e os fundamentos de nossa existência cristã (e franciscana). Os que se embrenham pelos caminhos do Senhor, aqueles que tentam viver “espiritualmente”, fascinados pela pessoa do Ressuscitado, experimentam a urgência de professar a fé no Filho de Deus que passa a ocupar todo o espaço de uma vida e a premência de seguir suas pegadas num alegre processo de conversão. Fé sólida sempre retomada e um incessante caminho de conversão podem proporcionar alegria ao discípulo e ao que resolve consagrar-se a Deus de maneira mais radical na vida consagrada. O que acontece quando o Senhor ocupa o espaço todo de nossa vida? O que significa a sequela de Cristo? Como se exprime nosso empenho de conversão? Encetamos a reflexão sobre o tema neste número de julho e continuaremos no mês de agosto.


1. Quando começo a digitar este texto tenho em mente rapazes e moças desejosos de sair da banalidade e da mediocridade e buscar as estrelas. Alguns pensam na vida de casamento e, outros, na consagração religiosa. No ardor de seus verdes anos, vejo-os a se lançarem na aventura cristã. Penso em noviços que estão se preparando para emitir seus primeiros votos, nos frades que optaram e optam pelo sacerdócio ministerial e querem ser sacerdotes segundo o Altíssimo. Tenho em mente homens e mulheres que desejam ser franciscanos continuando sua vida no mundo e vendo na família franciscana secular um seio que pode nutri-los e, assim, chegarem franciscanamente à santidade de vida. Imagino esses casais cristãos de bodas de prata ou esses religiosos que já passaram pelo meio-dia da vida. Até que ponto o Senhor ocupa ou ocupou o espaço todo de suas vidas? Até que ponto conseguiram ter em seu semblante traços do Cristo que andaram seguindo e perseguindo? Até que ponto conseguiram fazer com que o amargo se tornasse doce e o doce, amargo? Até que ponto os formadores se preocupam que esses novos membros tenham consciência de tudo isso?

2. “O coração da espiritualidade franciscana é este: a fé vigilante. Para além das ideologias, das sirenes que anunciam desgraças, dos slogans publicitários a respeito da felicidade, permanecer disponível à chamada de Deus, ao Espírito do Senhor. Projetar uma luz novamente sobre nossas fontes interiores. Escutar a Deus. Buscar a Deus. Deixar-se amar e modelar por Deus. Deixar-se levar novamente no meio da noite pela esperança que se estampou no rosto de Jesus. Acordar desta sonolência que se abateu sobre nosso mundo ocidental em toda a sua abundância. O projeto evangélico de Francisco se alicerça na fé. Uma fé que acredita que Deus é amor, que seu projeto sobre o homem dilata os nossos horizontes e que esta dependência de amor não aliena o homem, mas o liberta” (Michel Hubaut, El camino franciscano, p.21).

3. O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, carrega em si uma semelhança que, de modo algum, pode ser destruída ou suprimida por nenhuma ação humana. Ele é sempre um ser inquieto, que tem no peito um coração irrequieto. No homem a imagem de Deus é inalienável, mesmo se a semelhança seja contradita pelo não reconhecimento do Criador e pelas escolhas de morte que o homem faz não o levando em consideração os caminhos da vida. Essa imagem está sempre pedindo que o homem volte para Deus, que saia do estado em que vive como consequência de seu pecado, que abandone a mediocridade, que busque as alturas. Não podemos deixar de viver para o Senhor. Somos seres que temos saudade do encontro. Deus, seu lado, parece “não poder viver sem o homem”. O relacionamento entre o homem e Deus é de busca de um pelo outro, manifesta-se na nostalgia do encontro de um pelo outro. Cristo, o enviado querido do Pai, vem derramar o Espírito nos corações para que os homens voltem a Deus. E levando uma vida espiritual estamos sempre em movimento para o Pai.

4. A vida espiritual é um caminho de volta ao Pai, caminho que por vezes a criatividade humana descreve como ascensão para as alturas, escada que da terra chega a céu, passagem que precisa ser efetuada, itinerário a ser percorrido da dissemelhança até à conformidade com Deus, um retorno que se decide, um êxodo a ser vivido e que encontra seu termo em sua realização pascal na morte. O homem que caminha no Espírito (Gl 5,16), leva uma vida sob o signo do Espírito, aceita viver esta Páscoa na qual se oferece a si mesmo em holocausto a Deus e desta forma se encontra diante de Deus como Filho de Deus, vivendo a vida do próprio Deus (cf. Enzo Bianchi, La vie spirituelle chrétienne, in Vie consacrée, 2000, n. 1, p. 42-43).

5. Em Francisco há uma centralidade da experiência da fé. A leitura serena dos escritos do Santo de Assis, o teor de muitas de suas orações, exortações e cânticos de louvor revelam alguém que foi sendo cativado por Deus de tal maneira que o Altíssimo passou a ocupar todo o espaço de seu tempo, de seus trabalhos, de suas preocupações. “Nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada mais nos agrade ou deleite a não ser nosso Criador, Redentor e Salvador, único Deus verdadeiro, que é o bem pleno, todo o bem, o bem total, verdadeiro e sumo bem….”. “Nada nos impeça, nada nos separe, nada se interponha entre nós; em qualquer parte, em todo o lugar, a toda hora, em todo o tempo, diária e continuamente creiamos todos nós de verdade e humildemente o tenhamos em nosso coração e amemos, honremos…” (Regra não bulada XXIII). Na vida do cristão, do franciscano, em qualquer parte e a toda hora, sempre a fé no Altíssimo. Não uma fé intelectual, mas aquela que se traduz numa amorosa e respeitosa entrega de vida. Em outras palavras, o fiel caminha à luz da Presença do Senhor, da fé: no seu ir pelo mundo, na maneira como celebra a Eucaristia, no jeito de habitar silêncio, no saborear o Ofício, no amigo e no inimigo, na saúde e na doença, na juventude e nos anos do inverno da existência. Em tudo isso a centralidade da fé: Deus que vai ocupando todos os espaços da vida de alguém. Viver como se estivessem vendo o Invisível.

6. Thaddée Matura, OFM, no seu O Projeto Evangélico de Francisco de Assis (Vozes/CEFEPAL), escreve: “Estudos feitos recentemente (H. Roggen) têm demonstrado que não foi nem a preocupação social, nem o desejo de reformar a Igreja, nem a vontade de opor-se aos hereges que deu origem à aventura espiritual de Francisco. Ele converteu-se a Deus, e antes que outros viessem a se reagrupar em torno dele, viveu sozinho. O elemento central e essencial de sua vida e de seu projeto (…) é a experiência de Deus que ele conquistou com longo e ardoroso esforço. A esta experiência tudo deve estar subordinado. Nada, nem serviço, nem trabalho, nem salário devem ser obstáculo. Quando se fala em evangelismo de Francisco, antes de pensar na pobreza, é neste radicalismo que é preciso pensar, porquanto só ele fundamenta tudo o mais. Jesus e seu Evangelho introduzem o homem neste inefável mistério que Francisco decanta no final da Primeira Regra (cap.23). O arrebatamento pelo mistério explica a importância da solidão, do elemento eremítico e o lugar que a oração deve ocupar na vida dos irmãos” (p.47-48).

7. Esta experiência da centralidade da fé na vida de Francisco e na vida dos seus seguidores é fundamental. “Convertei-vos e crede na boa nova” (Mc 1,15). Francisco em mensagem solene dirigida a todos os homens afirma: “Perseveremos todos na verdadeira fé e na conversão” (1Regra 23,7). Um pequeno fascículo publicado pela Cúria dos Frades Menores em Roma, sob o título A caminho …rumo ao capítulo geral extraordinário (2005), assim expressava o tema: “Ao centro da vida franciscana encontra-se a experiência da fé em Deus no encontro pessoal com Jesus Cristo. Sob qualquer aspecto que se aborde (oração, fraternidade, pobreza, presença no meio dos homens) todo o projeto evangélico remete-nos continuamente para fé. As recomendações incessantes da Regra sobre a busca de Deus e a primazia absoluta e única na vida dos frades, sobre a adoração e o amor que Lhe são devidos, sobre o seguir as pegadas de Cristo e sobre a vida segundo o Evangelho, sobre a abertura ao sopro soberanamente livre do Espírito ou sobre a oração prioritária e incessante; as motivações evangélicas propostas a todos os comportamentos dos frades (contemplação, jejum, oração, vestuário, pobreza, trabalho, mendicidade, alimentação), mostram que na base de uma tal vida existe uma experiência única de fé num Deus que é amor”.

8. Tudo pode mudar. Estruturas podem ser substituídas. Casas e obras não precisam se eternizar. Permanece, no entanto, a nossa fé no Deus e Pai de Jesus Cristo. A fé de que estamos falando não é conhecimento puro ou mera reflexão teológica, repetição de fórmulas, sistema ideológico, “teimosia” cerebral, mas uma descoberta, um acolhimento gradual e vivo da realidade de Deus e do homem à luz de Jesus Cristo. Esta fé, dom de Deus livremente aceito é o único fundamento sólido sobre o qual podemos construir uma vida de oração, de castidade consagrada, de fraternidade, de pobreza e de serviço. As pessoas que desejam viver de Deus na vida cristã, na vida consagrada precisam ter bem claro o que acaba de ser dito. Os que querem começar o noviciado, os que pedem a profissão, os que renovam seus compromissos no jubileu de vida consagrada colocarão a experiência da fé em Deus em primeiríssimo lugar. Os mestres avisados levarão os seus discípulos, sobretudo nos primeiros antes da profissão e depois dela, a viverem experiências de fé.

9. Falamos então de uma busca espiritual. A experiência de fé, por vezes designada não tão adequadamente, de dimensão contemplativa consiste na descoberta incessante desta dupla realidade, Deus e o homem, do vínculo indissolúvel entre os dois, do caminho que deve ser trilhado através do compromisso da conversão. Trata-se de tentar ir além daquilo que se vê, de ver o invisível atrás do visível. Esta experiência se faz no lusco-fusco da fé. Todos os dias… nas coisas cotidianas… e naquelas mais elevadas. Uma vida passada sob o olhar do louco amor de Deus. Uma vida de fé. Desejar o espírito do Senhor, deixar lugar para sua atividade em nós, orar com um coração puro, ter paciência nas contrariedades, amar o inimigo, ter sempre o espírito voltado para o Senhor. Em suma, centralidade absoluta de Deus.

10. Na Carta Porta Fidei, com a qual se proclama o Ano da Fé, Bento XVI escreve: “Desde o princípio de meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do pontificado, disse: A Igreja, no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens fora do deserto, para lugares de vida, de amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude (n.2).

11. Ora, essa centralidade da fé leva o discípulo ao seguimento de Cristo. Nesse caminho de volta ao Pai dá o chamado para o seguimento: “Vem e segue-me”. Esse palavra continua a ressoar na vida de tantos, como um chamado pessoal. Os que desejam levar uma vida espiritual não deixam que ela caísse no chão. Trata-se de identificar esse chamado como chamado para nós, apontando uma forma de seguimento de Cristo que me é pedida. Esse chamamento nunca é vago, mas pessoal, mesmo feito no seio da comunidade de fé. Elemento fundamental da vida espiritual é o seguimento de Cristo.

Questões:

1. O chamou sua atenção neste texto?

2. O que significa a afirmação de que Deus ocupa todo o lugar numa vida?

(continua no número de agosto de 2012)

Frei Almir Ribeiro Guimarães


EXTRAÍDO DE : http://www.franciscanos.org.br/n/

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