Da oração
Transcrevemos as considerações que o Doutor Seráfico faz a respeito da oração. Em nossa edição precedente nos detivemos no tema da meditação. Espero que os leitores desta Revista Eletrônica experimentem um prazer muito profundo em ler essas orientações tão profundas e elegantes de Boaventura. Ou seria perda de tempo ler estas páginas? Que influência podem elas ter em nossa vida de oração?
Da oração pela qual a alma deplora a própria miséria, implora a própria miséria divina e adora a Deus.
Depois de havermos explicado, como se chega, pela meditação, à verdadeira sabedoria, explicaremos como se alcança o mesmo resultado pela oração.
Na oração se distinguem três partes ou graduações: pela primeira se deplora a própria miséria; pela segunda se implora a misericórdia divina; e pela terceira se adora a Deus com o culto de latria. Não podemos, no entanto, prestar a Deus esse culto se dele não recebemos a graça necessária; e não poderemos obtê-la da sua misericórdia se não começarmos a deplorar nossa miséria e confessar nossa indigência.
Por conseguinte, em toda oração perfeita se devem encontrar estas três partes. Uma delas sozinha não basta, pois que uma só não é capaz de atingir perfeitamente o fim proposto; para isso é necessária a colaboração de todas.
Da tríplice deploração da miséria
A deploração da miséria, qualquer que seja esta – culpa cometida, graça perdida, ou celeste glória diferida, - deve-se compor de três elementos: dor, vergonha, temor. Dor, pelo dano e pelas inconveniências que resultam dessa infelicidade; vergonha, pelo opróbrio e mácula que a acompanham; temor, pelo perigo e pelo castigo que a devem seguir.
A dor origina-se da memória do passado, relembrando a alma – o que omitiu que foram os mandamentos da justiça; o que cometeu, que foram os atos proibidos; - o que perdeu que foram graças espirituais
A vergonha dimana do conhecimento do presente, notando a alma – onde está, que é em baixo e longe de Deus, quando estava no alto e perto dele; - como está, que é desfigurada pela lama do pecado, quando era uma formosa imagem (de Deus); em que condição está, que é a de escravidão, quando, antes, era a de liberdade.
O temor provém da consideração do futuro, prevendo a alma – aonde vai, que é ao encontro do inferno, para onde seus passos a conduzem com rapidez; - o que a espera, que é o juízo, ao tempo inevitável e justo; - o que receberá, que será o estipêndio da morte eterna.
Da tríplice imploração da misericórdia
A imploração da misericórdia, qualquer seja a graça que se implore, de ser feita – com intensidade de desejo, segundo nos inspira o Espírito Santo, que roga por nós com inenarráveis gemidos (Rm 8,26); - com firmeza de esperança, pois que nos assegura o deferimento Cristo, morto para nos salvar – com insistência no pedido, porque auxilia as nossas súplicas a intercessão de todas as boas almas.
A primeira nos é inspirada pelo Espírito Santo, porque por ele é que o Pai nos predestinou no Filho, desde toda a eternidade: por ele é que renascemos espiritualmente no batismo; por ele é que somos congregados de modo unânime da Igreja.
A segunda nos é assegurada por Cristo, porque na cruz ele se sacrificou por nós, neste mundo; porque diante da face de Deus Pai ele se apresenta por nós ( Hb 9,24) na glória do céu; porque como sacramento, ele é imolado pela santa Madre Igreja.
A terceira nos é ensinada pela comunhão dos santos, isto é, pelo patrocínio dos anjos que nos guardam, pelo sufrágio dos bem-aventurados que já triunfaram, e pelo merecimento dos justos que ainda combatem.
Quando estes três predicados se acham reunidos é que com eficácia se implora a misericórdia divina.
Da tríplice adoração de Deus
A adoração que se presta a Deus, qualquer que seja a graça recebida que a provoque, deve ter três qualidades, pois deve nascer em um coração que, para merecer a graça, saiba curvar-se com reverência e amor diante de Deus; saiba dilatar-se de benevolência e gratidão; saiba elevar-se àquela complacência e mútua comunicação própria dos esposos, como ensina o Espírito Santo no Cântico dos Cânticos e nisto se haver com reta ordem de modo a alcançar a maravilhosa alegria e o júbilo que, arrebatando a alma, a fazem exclamar: Como é bom ficar aqui (Mt 17,4). Este deve ser o termo da nossa oração e antes de atingi-lo não devemos desistir, pois este é o centro do tabernáculo admirável, a casa de Deus, o lugar onde ressoa com regozijo a voz do anfitrião” ( Sl 41,5).
Para suscitar o respeito, admira a imensidade de Deus, e contempla a tua pequenez. Para excitar a gratidão, observa a dignidade de Deus e examina a tua indignidade. Para exaltar a complacência, reflete no calor da divina caridade e na tua frieza para com Deus.
Aliás, é preciso saber que devemos mostrar a Deus reverência porque ele a merece por três títulos: primeiro, como Pai, pelo qual fomos formados, reformados e educados; depois, como o Senhor, pelo qual fomos livrados das fauces do inimigo, resgatados do cárcere do inferno e levados à vinha do Senhor; enfim, como Juiz, diante do qual somos acusados, convictos e confessos; acusados pelo brado da consciência, convictos pela evidência da vida pecaminosa, confessos ante a visão da divina Sapiência; por tudo o que deve, segundo o direito, ser pronunciada sentença contra nos.
Assim sendo a primeira reverência que prestamos a Deus deve ser grande, a segunda maior; e a terceira, a máxima; a primeira, ao modo de inclinação, a segunda ao de genuflexão e a terceira, ao de prostração. Na primeira nos consideramos pequenos; na segunda, mínimos; na terceira, nulos.
Igualmente devemos, de três maneira, manifestar a Deus nossa gratidão: grande, maior e máxima; grande em consideração da nossa indignidade; maior em atenção à magnitude da graça, e máxima em vista da imensidade da misericórdia divina. Grande pelas coisas que nos deu; maior pelas que nos perdoou; máxima pelas que nos prometeu; - a dádiva com a natureza, o perdão, com a graça, - a promessa, com a superabundância dos dons espirituais. Esse sentimento deve, sucessivamente, encher, dilatar e, enfim, transbordar o nosso coração.
Também de três modos havemos de manifestar a nossa complacência com Deus: primeiro, sabendo que só em si ele se compraz; segundo, procurando agradar só a Deus; e, terceiro, desejando que todos partilhem estes modos de ver. O primeiro modo é grande, é o do amor gratuito, e por ele o mundo é crucificado para o homem; - o segundo é maior e é o do amor devido a Deus, e por ele o homem é crucificado para o mundo – o terceiro é o máximo, é o amor composto dos dois precedentes,e por ele o homem é crucificado para o bem do mundo, isto é, dispõem-se a morrer por todos para que todos agradem a Deus.
Este é o estado da perfeita caridade e antes de atingi-lo ninguém se considere perfeito; pois só atingimos esta perfeição quando não só estamos resignados a morrer, mas também desejamos avidamente morrer para a salvação dos nossos próximos, conforme o que dizia São Paulo: De boa vontade darei tudo o que é meu e me darei a mim mesmo para a salvação de vossas almas” (2Cor 12,15).
A este perfeito amor do próximo só se chega depois de haver chegado ao perfeito amor de Deus, por cujo amor se ama ao próximo, que só em Deus pode ser perfeitamente amada.
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