3 de outubro de 2014

POR OCASIÃO DA FESTA DE SÃO FRANCISCO - Frei Vitório escreve sobre o Trânsito de São Francisco





Por Frei Vitório Mazzuco


A nossa quase decadente civilização moderna precisa de Francisco. Ele entende de tempos ruinosos e de reconstrução. Ele é homem da busca sincera e das mais radicais mudanças que levam a polir a vida e descobrir novos sentidos. Ele sempre foi pelo caminho da contramão do consenso, isto é, resolveu ser feliz abraçando a Pobreza. Que estranho jeito este de ser feliz sem ter nada? Isto espanta e encanta a modernidade. Ele atraiu muita gente, fundou uma Ordem, trouxe uma cultura de paz, sem as tensões do domínio, da posse e do poder. Ele mostrou para a sociedade de seu tempo que era possível viver bem sem excluir doentes, pobres, camponeses e leprosos. Ele saiu de sua casa definitivamente e criou uma casa do espírito bom e fraterno.

Francisco de Assis é um Santo que tem um diferencial: causou um mal-estar em sua época, um impacto, um escândalo, mas entrou para sempre na simpatia de culturas e religiões. Disse que o Evangelho era mais que palavras. Criou boas relações com a natureza e viveu uma sacralidade com pedras e pássaros. Reinventou a convivência de irmãos e irmãs. Visitou o Papa e instaurou na Cúria um sonho: a eclesiologia não vai ruir enquanto houver mendicantes de sentidos.

Francisco é o fundador de uma Ordem que não coube em si e se fez mais de três. O seu amor plural criou famílias espirituais que têm rosto, Regra, força de profecia e espírito comum. Atraiu Clara de Assis e deu espaço para o feminino ser forte na mística e na contemplação; mas abriu seu coração para deixar que Clara construísse, com seu jeito próprio e no discernimento do Espírito, um franciscanismo pleno de claridade, silêncio, prece e a terna e fraterna clausura a guardar o falante, vivo, pobre e crucificado Cristo de São Damião. E cada ano, a sua Festa, proporciona grandes ocasiões celebrativas e reflexivas.


Hoje, 03 de Outubro, às 18 horas, na maioria das Fraternidades Franciscanas, celebra-se o Transitus de São Francisco, a sua passagem para a eternidade. Hoje, o Cantor do Irmão Sol vive o seu mais gritante paradoxo: aquele que cantou o mundo na sua beleza irradiante em todas as criaturas, despede-se deste mundo e faz a travessia para o outro lado da existência terrena. Mas faz este rito de passagem de um modo sereno, alegre, sem as tensões próprias da morte. Hoje, em Francisco, Criação e  Redenção encontram-se e confraternizam-se. 

Hoje, a força originária do mundo volta à sua raiz sagrada. Ele parte cantando com todas as criaturas viventes, exatamente no momento onde já não mais pertence ao espaço de todas as coisas visíveis.  Há uma reconciliação terna com o poder da morte. Ela não vem buscá-lo numa ruptura brutal com o convívio de tudo e de todos; mas permite que todos os seres o acompanhem ao Paraíso definitivo.

Francisco despede-se desta habitação cantando o Cântico das Criaturas; e o Espelho da Perfeição diz que ele se foi no ritmo e melodia do Hino da Irmã Morte. A lírica poesia da criação transforma-se uma liturgia escatológica. O menestrel dos bosques, dos vermes, pássaros, montanhas, florestas, peixes e lobo, é agora acolhido pelo coro dos Anjos. Há uma fusão de naturezas. Aquele que cantou lua e estrelas atravessa o limite do universo e entra no inefável espaço da glória.

É crepúsculo de verão luminoso, colorido e quente na Úmbria; porém já é o entardecer forrado de folhas secas no amarelado chão do outono assisiense. Até a natureza apronta-se para bruscas mudanças. Ano de 1226. Aquele que andou todos os caminhos, agora repousa enfermo no palácio episcopal. O médico Giovanni Finiatu de Arezzo o visita e conversa com ele sobre seu estado de saúde. Diz que vai correr tudo bem como que a predizer o fim bem próximo. Há cumplicidade entre os dois. Um, santamente, sabe que seu estado de alma prenuncia o fim de todas as dores no abraço das alegrias eternas; o outro, clinicamente, tem a certeza que o seu mal não tem cura.  O médico sente que o amigo vai expirar brevemente. O santo dá boas vindas à Irmã Morte com visível contentamento. Chegam Frei Leão, Frei Ângelo, Fra Jacoba, Frei Masseo; trazem as lágrimas, o pranto, panos, uns doces e o canto. 

Francisco é só alegria, prece e entrega ao misericordioso Deus. Não há dor física. Nos irmãos e na sua amiga dói a separação; em Francisco, vibra o gosto pelo encontro com o sonhado Reino do Céu. Francisco pede para sair do palácio episcopal e ir para o aconchego da Porciúncula. Da cama dos bordados lençóis quer o chão tecido pela terra mãe. Ali expira mansamente no leito nupcial no colo da sua Amada Senhora Dama Pobreza.


Texto de Frei Vitório Mazzuco

Extraído do Blog : http://carismafranciscano.blogspot.com.br

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